NÃO BASTA NÃO SER RACISTA, É PRECISO SER ANTIRRACISTA
Djamila Ribeiro ativista, feminista, escritora e filósofa brasileira |
Racismo não é meu lugar de fala. Como branca, não sei o que é ser julgada, estereotipada e excluída pela cor da minha pele. Não sei como é entrar em uma loja e ser perseguida pela segurança, com medo de que roube algum produto. Não sei como é ser marginalizada como se minha raça fosse inferior. Não sei como é carregar o medo de tomar tiro da polícia em uma blitz. Não tenho ideia de como é enfrentar todo dia o racismo institucional e velado que existe em nosso país.
Não estou aqui para dizer o que é ou não racismo. Aprendi a escutar e a ler sobre histórias de vida que passam longe da minha realidade. Eu não sei o que é ser a maioria em favelas, ser rejeitada em entrevistas de emprego por ser negra ou mesmo andar na rua e ver o medo nos olhos das pessoas que desviam, ou ainda ser hipersexualizada, como a mulata fogosa. Foi preciso tomar consciência.
Eu nunca me considerei racista, e nem cairia na falácia de dizer “não sou racista, tenho amigos negros”, mas porque nunca os vi de maneira diferente de mim por causa de sua cor de pele. Só que, como estou inserida em um contexto racista, também não me interessei pelas dificuldades que esses amigos enfrentaram, talvez até de forma inconsciente, por causa de sua raça. Vivi alienada durante anos, reproduzindo estereótipos e palavras racistas sem saber.
Foi nessa busca por me tornar uma pessoa melhor e mais engajada politicamente, principalmente em pautas de relevância para a transformação da sociedade com mais justiça e igualdade, que comecei a entender que literalmente existem dois mundos dentro do nosso globo separados pela cor. E esse aprendizado e desconstrução tem me levado também a reparar em coisas que antes eu não via.
Quando estou em um ambiente, procuro observar se existem pessoas negras e quais suas funções. Por exemplo, há pouco mais de um ano, minha mãe começou a contratar uma empresa de faxina que oferece mão de obra para o serviço doméstico e pudemos testar algumas pessoas antes de escolhermos a que contrataríamos. Nem preciso de dizer que todas eram mulheres e as quatro negras.
Nós também temos um escritório contábil, herdado da antiga patroa da minha mãe, quer dizer, minha mãe comprou. Os três funcionários estão conosco há treze anos e não há nenhuma pessoa negra no quadro. Ao perceber esse disparate de funções, eu reflito sobre o meu papel social e também empresarial para fazer a diferença em uma sociedade tão desigual.
Eu também converso. Aponto essas incoerências para a minha mãe, mas também converso com a própria diarista. Permito que ela fale sobre sua realidade para mim e fico à disposição para ajudá-la no que necessitar. A última, inclusive, virou uma amiga querida, com quem debatia política na hora do almoço todas as sextas-feiras. Também puxo a orelha de pessoas brancas que falam termos racistas perto de mim, tentando fazê-las enxergar o mundo por outra perspectiva.
Porque, como disse no título, não basta eu me autointitular não racista e não fazer nada quando me deparar com o racismo sendo praticado na minha frente. Ou mesmo cruzar os braços diante do sofrimento alheio, chamando-o de vitimismo. Não faço isso para ganhar crédito. Faço porque a luta pela igualdade, que eu tanto prezo, precisa atingir toda a sociedade e as injustiças sociais. Então preciso ser também antirracista e, para isso, ouço o que os negros têm a dizer sobre racismo.
As estatísticas são assustadoras. Jovens negros são os que mais são assassinados, incluindo o próprio Estado através da polícia militar. Também são a maioria nas prisões, principalmente devido ao tráfico de drogas. Mulheres negras são as que mais sofrem violência obstétrica, doméstica e feminicídio. A participação de pessoas negras em cargos de chefia em empresas é baixo, assim como a representação nas artes e na literatura.
No cinema, são representados em papéis sem destaque ou em funções de subalternidade, quando não hipersexualizados. Tenho observado as capas de filmes e séries e a quantidade de negros parece apenas uma cota de representatividade. Em um país em que a população declaradamente negra passa de 50%, essa conta não bate. Precisamos fazer as pazes com o nosso passado escravocrata. Só assim poderemos construir um futuro mais justo para todos.
A única notícia boa, que uso para finalizar esse capítulo, é que as políticas públicas dos últimos anos começaram a mudar a cara do Brasil. Hoje a população negra já representa mais da metade dos estudantes em universidades públicas. Vitória dos movimentos negros, que vêm lutando por reparação histórica há tempos.
Como branca o que posso fazer é dar a mão ao movimento e lutar junto. Aprender a não ser racista, ouvindo o lugar de fala da pessoa negra. Também apontar o racismo do meu colega branco. E ler, desconstruir meu racismo e dar mais atenção aos pequenos e simples gestos que podem mudar tudo.
Meu propósito para 2020 é ler mais livros de autores negros, estudar mais sobre a luta da negritude e continuar lutando por justiça social, principalmente para quem, infelizmente, foi colocado na base da pirâmide e sustenta a sociedade brasileira com seu suor e sofrimento.
Mudemos a nós primeiro se quisermos construir um país melhor, e nos unamos para exigir dos que detém o poder a mudança estrutural da sociedade em que queremos viver.
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