A DEMOCRACIA RUI, MAS NÃO POR UMA RETROESCAVADEIRA
Maior manifestação da história do Brasil liderada por mulheres em São Paulo em 29 de setembro de 2018 (Foto: BBC) |
Apesar de boa parte da população alertar ainda durante a campanha eleitoral, o voto popular da maioria elegeu um candidato que hoje confirma tudo o que o movimento #EleNão denunciava e temia: temos um presidente que não aprecia os ritos democráticos. No primeiro ano de mandato ele cometeu diversos crimes de responsabilidade, atentando contra a legislação vigente que limita seu poder e serve de guia para uma postura presidencial representativa e respeitável.
Mas o que esperar de um ex-capitão que aposentou do exército brasileiro aos 33 anos por insubordinação, que entrou para a política elegendo-se deputado pelo estado do Rio de Janeiro através de um partido inexpressivo, e em 28 anos teve apenas 2 projetos aprovados, que faltou com decoro parlamentar ao enaltecer um torturador da ditadura em plenário, que disse que não estuprava uma colega porque ela é feia, que comparou negros com animais, que afirmou que indígenas são preguiçosos, que prefere um filho morto que gay, que chamou a própria filha de fraquejada e que defende miliciano? Não dava mesmo para esperar muita coisa.
Sabemos que o que o ajudou a se eleger foram dois grandes fatores: a crise político-econômica e o fundamentalismo religioso. Dois temperos perigosíssimos para uma democracia jovem, tentando se fortalecer como a nossa no pós-período da ditadura militar. O ministro Paulo Guedes veio como uma lufada de ar para aqueles que valorizam o mercado acima da humanidade e a ministra Damares Alves como a anja incauta, capaz de salvar o Brasil da perdição dos “esquerdistas safados”. Chamá-lo de Messias é bastante simbólico, apesar de ser seu segundo nome próprio.
Só que o seu Jair não foi ungido por Deus, meus queridos leitores, nem foi eleito pela vontade dEle para cumprir qualquer missão celestial. Primeiro porque não estamos em uma monarquia, muito menos no século XV, e ele não é o soberano desse país. Segundo porque vivemos dentro de um Estado de direito, que por essência é laico para acolher todas as diferenças. Para quem não sabe, isso significa que apenas dentro de uma democracia todo mundo é livre para professar a fé e as ideias que quiserem, por mais absurdas que sejam.
Defender a democracia é defender o seu direito de pensamento e fala, assim como do outro, é aprender a conviver com o diferente, é discutir, sim, porque é saudável compartilhar opiniões divergentes, e, acima de tudo, respeitar o outro, mesmo não concordando. Discordar também é um direito. Impor é autoritarismo.
Defender a democracia e a livre expressão passa por um tripé, que é a base democrática de um Estado de direito, que tem sua laicidade intacta: liberdade de expressão, pensamento crítico e liberdade de imprensa. Sem liberdade de expressão não temos, por exemplo, algo que todo mundo gosta, principalmente nós, amantes de livros, filmes e séries: a cultura. Sem liberdade de imprensa não somos informados sobre o que está acontecendo em nosso país e no mundo, e não podemos vigiar os poderes para que não abusem de sua autoridade outorgada por nós.
E sem uma educação libertadora não temos pensamento crítico, não nos entendemos como sujeitos políticos, não aprendemos que em uma democracia o povo é soberano e que sua vontade não é expressa somente nas eleições, periodicamente, mas constantemente. Que existem meios legais e eficientes de cobrar dos servidores públicos que escolhemos para nos representar para que cumpram suas promessas de campanha e atendam os anseios da população mais necessitada.
Não é de se admirar que os ataques antidemocráticos desse desgoverno se deem exatamente nesse tripé. Com calúnias, fake news, alarmismos e muitas mentiras facilmente verificáveis, temos não apenas um presidente eleito democraticamente contra a democracia, como também ministros contra seus ministérios, que estão fazendo de tudo para destruir suas funcionalidades de dentro para fora, e causando um verdadeiro caos no estado.
A censura está correndo solta. Nas universidades, os estudantes estão resistindo aos mandos e desmandos do ministro. Na cultura, artistas de diversos gêneros usam sua arte como forma de resistência às constantes tentativas de censuras e retiradas de investimento. E, a mais preocupante, é a dos direitos humanos, comandada por uma fanática religiosa, que nega a ciência em campanhas para combate de violência doméstica e infantil.
Entenda bem, meus queridos, como democrata respeito a religião de todo mundo, mas como cidadã livre eu não aceito que o Estado de direito, que deveria ser laico e abraçar todas as diferenças, me obrigue a engolir políticas públicas baseadas na Bíblia. Até parece que esse desgoverno e os evangélicos que o apoiam estão em sua própria cruzada santa, promovendo um período das trevas, como os mil anos comandados pela igreja católica durante a idade média.
Achei que tivéssemos superado isso, mas estamos voltando com força a uma era obscurantista, horrível para as populações que vivem fora do padrão imposto pela elite que comanda o país, e que sofre não apenas censura, velada ou explícita sobre seu trabalho ou liberdade de expressão, mas também perigo físico. Suas vidas se tornam descartáveis já que não se encaixam nesse “novo” Brasil que estão querendo nos impor goela abaixo. Com o maldito slogan da ditadura (Ame ou deixe-o), tanto governantes quanto simpatizantes têm antidemocraticamente insistido em tentar expulsar pessoas que pensam diferente do seu próprio país.
Parece um motim, uma facção criminosa, uma máfia, eu diria. Não foi à toa que eu mencionei a retroescavadeira no título, em alusão ao motim realizado pelos policiais no estado do Ceará em março de 2020, apimentando o caos que está o país. É um motim porque policiais são proibidos por lei de fazer greve pelo motivo óbvio: são responsáveis pela segurança da população. Tanto que os homicídios saltaram desde que se deu início. Também é simbólico que os ditos “grevistas” se mascarem, como criminosos que são, pois estão proibidos pela nossa lei máxima, a Constituição Federal.
O que mais me dói é que parte da população que critica esse governo passa um pano grande por causa da política econômica que acreditam que os está beneficiando. Talvez esteja mesmo e só os mais pobres não estejam vendo melhora em suas vidas, porque está claro que tudo piorou de um ano para cá. Porém, meus queridos, não dá para apoiar um governo autoritário em partes porque tudo faz parte de um mesmo projeto: destruição do Estado e exploração do pobre trabalhador para o benefício de uma pequena elite.
Mas existe esperança. Enquanto houver vida, há esperança. Eu acredito nisso e vim compartilhar com vocês essa esperança. A retroescavadeira do Cid Gomes foi usada para desobstruir a barricada e livrar os cearenses do motim. Nós somos a retroescavadeira. O povo, nas ruas, unido. Fazendo política como se deve. Propagando a sua voz. Exigindo e cobrando. Agora é hora de tomar partido. É democracia ou barbárie. A tendência é só piorar se continuarmos de braços cruzados, permissivos.
Se você não se identifica com coletivos civis, estudantis ou partidos políticos, existem outros meios de dar voz a sua soberania cidadã. Acesse as redes sociais dos governantes, inclusive do congresso, e exija que a democracia seja defendida com unhas e dentes pelos parlamentares, que façam algo para nos salvar desse falso Messias. Mande emails. Cobre sem parar. Não desanime. É a nossa vida que está sendo afetada diretamente pelas decisões desse desgoverno. Não o deixe decidir por você. Tome as rédeas de sua posição democrática e de direito civil.
Não adianta sentar em frente ao computador, ou na mesa da sala de jantar, e ficar reclamando. Mudanças acontecem com ação, assim como a política. Ela pode começar no campo das ideias, mas precisa terminar na concretização e na transformação da sociedade. Sejamos sujeitos não apenas de nossa história individual, mas também da História do nosso país. Resistam comigo.
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