A NATURALIZAÇÃO DA MORTE
Delegacia é queimada em ato contra morte de homem negro nos EUA |
Estava assistindo na Netflix ao filme Vida e uma frase dita pelo cientista que descobriu uma vida marciana me levou a reflexão. O personagem diz que entende o alienígena, com orgulho e resiliência, que não é pessoal, é questão de sobrevivência, e para sobreviver ele precisa comê-los. É a clara submissão do mais fraco diante do mais forte. É a desistência diante do poder exercido pelo outro. É a passividade de se permitir (me atrevendo a dar um pequeno spoiler do enredo) até ser devorado vivo pela inevitável e inegável força do outro. Esse mesmo personagem também define “vida” como algo que, para existir/prevalecer, precisa de destruir. Unindo a primeira frase a essa, temos o conceito da lei do mais forte, que rege, por exemplo, a teoria evolutiva.
Aí eu paro e penso: até onde esse ideário está inserido em nosso modo de viver em sociedade, desde o contexto familiar até o âmbito social? Até onde esse pensamento guia nossas práticas, decisões e relações? Até onde essa lei rege também o mercado e a política? Até onde essa ideologia naturaliza a morte em nosso país? E então eu me pergunto: por quê? Pra quem? Quem morre? O que é destruído? Em nome de que? Quem se beneficia? Quem manda? Com que direito? Com que poder? O poder significa decidir quem vive e quem morre para benefício próprio? O privilégio de alguém deve ser preservado em cima do sofrimento do outro? A nossa luta deve ser somente por sobrevivência própria? A vida é somente isso? Sobreviver?
Quanto mais me pergunto e analiso filmes, séries, livros e arte no geral, eu vejo essa ideia sendo exposta de diversos ângulos. Daqueles que lutam por si mesmos, daqueles que lutam por seus familiares, ou mesmo aqueles que lutam por uma comunidade. A minha conclusão é que vida, em nosso contexto histórico, é luta. É luta de quem quer manter seu poder e seu privilégio sobre os mais “fracos”, e esses lutando para sobreviver contra a força dos mais “fortes”. Uma luta desumana e desigual, não por questão numérica, mas por posição social e poder aquisitivo.
Eu vejo essa luta nas relações familiares, amorosas, sociais, trabalhistas, comerciais e, principalmente, políticas. Estamos vendo na saúde com a pandemia. O pico entre os ricos passou rápido, agora está entre os pobres, que precisam do sistema de saúde pública e não têm condições financeiras para fazer um isolamento adequado. Muitas vezes não têm nem condições sanitárias para uma higiene apropriada ou dividem um espaço minúsculo com uma família grande. Pessoas que mal possuem dinheiro para comer, com imunidade baixa, comorbidades não tratadas por não poderem pagar pelos remédios ou não poderem parar de trabalhar por sustentarem a casa. Pessoas que não têm o luxo de fazer home office por sequer terem internet em casa.
Tem gente indo para a rua, quebrando o isolamento social, e fazendo pressão política para reabrir o comércio, à custa de dezenas de milhares de vidas. Lembro quando a Itália chegou ao número de 20 mil mortes, a comoção no Brasil foi grande. Agora nosso país passou dos 150 mil e as pessoas mal comentam. Só pensam em si mesmas e em suas malditas contas para pagar. Sim, eu sei, elas não esperam para chegar. Mas me revolta ver que pessoas privilegiadas e com acesso a todos os serviços sejam egoístas a ponto de não apenas se colocarem em risco, como também contaminarem outros em nome de uma falida economia. Por que todo mundo não se une para exigir que o Estado cumpra seu dever de prover nessa hora com nossos impostos? Não os pagamos à toa!
Mas isso no Brasil não é de agora porque um fascista, que desumaniza pobre, negro, LGBTQIA+ e mulheres, chegou ao poder. Não! É histórico! Temos a própria colonização, feita sobre o genocídio indígena, para provar isso. Temos o vergonhoso período da escravidão para constatar que a naturalização da morte ocorre em nosso país há tempos. E que continua em nossos dias com as favelas, os moradores de rua, a informalização do trabalho através do fim dos direitos trabalhistas e a criação dos aplicativos, as prisões lotadas, a invasão das terras indígenas à bala, as mulheres assassinadas por aqueles que deveriam amá-las, a comunidade LGBTQIA+ que é perseguida e assassinada por serem fora do padrão, os seguidores de religiões africanas ou outras culturas não ocidentais/hegemônicas também, as queimadas na Amazônia que podem gerar não apenas o fim da nossa água e aumentar a temperatura do planeta, como também o contato com outros vírus e uma nova pandemia, muito pior que essa.
Posso passar o dia falando da tragédia que acontece em nosso país diariamente e ninguém vê. Ninguém se importa. Ninguém pensa a respeito. Todo mundo continua olhando só para o próprio umbigo. Todo mundo continua vivendo sua vida como se a morte de um negro sob o joelho de um policial fosse só mais um caso. Sim, é mais um mesmo, que soma com milhares, junto com outros milhões de indígenas, mulheres e LGBTQIA+ que morrem vítimas dessa violência estrutural que cega até mesmo pessoas de bem e de bom coração.
Meu único apelo nesse artigo é: abram os olhos! Enxerguem o mundo a sua volta. Saíam da própria bolha. Que nós, que temos algum privilégio, possamos nos mobilizar e formar um cordão de isolamento diante dessa minoria oprimida. Aquele que é mais forte e ainda tem a máquina do estado a seu favor pode ser letal, e sozinho parece impossível mesmo combatê-lo. Mas juntos, ah! juntos, nós podemos transformar o mundo. Eles são 30%, nós somos 70%. Que direito eles têm de impor sua ideologia de morte sobre nós? Nenhum! Vamos tacar fogo no mundo? Vamos lutar lado a lado? Vamos mostrar que essa lei é do mais “forte” inaceitável?
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