A 'empresarização' da vida chega até a arte

O empreendedor de si mesmo ganha corpo através das plataformas digitais de autogestão — inclusive na literatura.


Escrevi romances por 13 anos e travei. Faz três anos que não consigo escrever mais nenhum. Até comecei alguns, mas não consegui terminar. O que está afetando a minha criatividade é essa lógica empreendedora das redes sociais, que transforma pessoas em produtos. Demorei muito em reflexões e análises desse cenário individual — que é o reflexo de uma realidade presente em todos os lugares no Brasil — para, enfim, sentar e escrever este artigo.

Meu sonho de adolescente era publicar e ser lida, e felizmente consegui realizar. Claro que as plataformas de autopublicação democratizaram o acesso aos leitores e criaram um mercado digital que segue em expansão. Eu não teria alcançado os leitores dos meus 30 livros se não fossem as plataformas. Dito isso, elas, aliadas às mídias sociais e à sua lógica de hiperexposição, também são geradoras de uma grande ansiedade, que me fez adoecer psicologicamente.

Os ganhos vieram — inclusive financeiros —, possibilitando que eu deixasse a carreira de comunicadora para me dedicar ao meu sonho por apenas quatro anos. Porém, as plataformas desregulamentadas pagam como querem, e cada vez menos, assim como exibem seu conteúdo mediante regras próprias, às quais ou você se adapta como uma camaleoa ou desaparece. Eu só queria escrever histórias, não me tornar influenciadora digital. Só queria impactar vidas com meus escritos, como os livros que li fizeram comigo — e não fomentar redes de fanáticos por mim. Queria propagar a leitura, não criar ídolos de barro.

Mas tudo ficou muito pesado. Eu tinha que escrever, revisar, editar, criar a capa, fazer a diagramação, publicar e divulgar — tudo sozinha. Sem apoio nem dinheiro. Fui ficando cansada, esgotada mesmo, a ponto de não sentir mais vontade de escrever. Recentemente, tomei a decisão de abandonar a carreira de escritora de vez e voltar para a comunicação, abrindo minha própria agência. Será uma nova luta — que não estou travando sozinha —, com a ajuda de uma parceira e sócia. Mas cheguei a voltar a um emprego CLT em um escritório de contabilidade, porque foi o que surgiu, mesmo não tendo nada a ver comigo, mas que me possibilita pagar as contas.

Estou mais aliviada por ter alterado minha perspectiva sobre a escrita. Por isso estou escrevendo este texto: porque me dei conta de que não quero mais escrever comercialmente, mas que posso ressignificar minha escrita. O mercado de livros, no geral, é uma grande decepção no Brasil. Não mudamos o foco. Ainda vendemos mais best-sellers estrangeiros, mesmo que não sejam bons. Não investimos nos autores nacionais. Padronizamos nossos escritos por “booms” ou nichos e não nos permitimos aventurar por outros cenários possíveis de criatividade. Somos escanteados se tentamos.

Essa lógica empresarial e comercial está matando a criatividade. Sei que matou a minha. Mas podemos usar o exemplo da música. O que temos de novo? E na pintura? E na escultura? A lógica do lucro e da sobrevivência está minando a fluidez e a diversidade. As rádios só tocam sertanejo. Os livros mais vendidos da Amazon são eróticos, com CEOs e mafiosos na capa — um reflexo interessante dos poderosos no Brasil. Grandes autores escrevem histórias tão semelhantes há décadas que basta ler um para ter lido todos. Essa ideia equivocada de que arte é produto está destruindo a própria arte.

Isso adentrou de forma tão poderosa em nossas vidas que passamos a acreditar que sucesso está atrelado ao dinheiro e à produtividade. Associamos a imagem de ricos e bilionários a pessoas geniais, de inteligência acima da média. Nisso, transformamos pessoas comuns em fracassadas e artistas em meros sortudos que conseguiram transformar seus hobbies em trabalho — e, por isso, “não trabalham um dia sequer”. Isso é uma falácia. Produzir arte dá trabalho e desgasta tanto quanto trabalhar com carteira assinada — às vezes mais, porque, para se destacar ou chamar atenção, o artista muitas vezes precisa extrapolar a si mesmo e seus limites físicos e psicológicos. Entrega tudo, até a alma.

A verdade é que o mercado de trabalho está mudando — primeiro com a plataformização, depois com a inteligência artificial —, que vem reduzindo cada vez mais os postos de trabalho e jogando boa parte da população na informalidade, inclusive os artistas, que sempre foram marginalizados. Para conter uma revolta contra o sistema, difundiram-se duas ideias: a primeira, da meritocracia — de que só chega lá quem merece ou se esforça —; a segunda, de que o empreendedorismo é a chave para o sucesso. Portanto, seja empreendedor de si mesmo e nunca mais dependa de um patrão. E essa ideia pegou fácil. Ninguém quer ter patrão nem hora para entrar e sair do trabalho. Todo mundo quer ser livre.

Mas quem dita as regras de qual tipo de trabalho vale mais é o mercado — e não a nossa liberdade —, e ficamos cada vez mais prisioneiros do sistema. Não porque não queremos produzir e colaborar com a sociedade, mas porque a sociedade pouco ou nada nos dá de volta por nosso esforço. Porque a forma como organizamos o trabalho nos é imposta, e não nos perguntaram nada. Porque, se me perguntassem, eu diria que arte vale mais do que um milhão de bilionários. Que a cultura é a cura para nossas almas. Que a literatura nos aproxima de nossa humanidade e de nosso autoconhecimento. Que ela nos torna melhores e mais solidários. Que é a única salvadora de nós mesmos. Todo trabalho tem seu valor, e não é o mercado quem deve impor suas métricas ao que gostaríamos de fazer. A própria necessidade de atividades essenciais para a existência humana deveria regrar o trabalho — em favor de todos —, e não o lucro em benefício de poucos.

Outro problema sério das plataformas é que são importadas; ou seja, o lucro delas é levado para suas sedes em outros países, ficando conosco somente o ônus dos empregos informais, sem direitos nem vínculos — apenas exploração e incerteza sobre quanto ganharemos com o suor do nosso trabalho —, enquanto os donos dessas plataformas se tornaram não só bilionários, mas também as pessoas mais influentes do mundo, interferindo em governos e democracias a seu bel-prazer.

Portanto, sejamos radicais contra o sistema. Hackeemo-lo por dentro. Sejamos a contradição em meio ao cotidiano. A aventura em meio ao comodismo. A risada em meio ao tédio. A alegria em meio ao ódio. A revolução em meio à ordem estabelecida. Façamos arte pela arte, pela vida, por nós mesmos. Façamos a luta através da música, da literatura, da cultura, do companheirismo, da parceria, da união, da comunidade, da cooperativa, da manifestação, da comemoração. Sejamos o meio pelo qual a criatividade se manifesta. Sejamos a luz no fim do túnel. A saída no fim do beco murado. O alicate contra o arame farpado. O sol em meio às trevas. O centro gravitacional da humanidade contra a ilusão do sucesso empresarial. Sejamos, singelamente, humanos.

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