O AMOR NÃO É VIOLENTO

by - agosto 29, 2020

 


Nenhuma mulher nasce livre. Toda mulher nasce com uma marca. Um estigma que determinará o resto de sua vida no ultrassom ou no chá revelação. Uma vida de trabalho, cansaço e solidão. Ser mulher é uma performance de feminilidade defendida e aceita pela estrutura patriarcal, que tem como base o sujeito, ou seja, o homem. A humanidade é o homem, a mulher é o outro, oposto ao homem, o objeto subjugado ao sujeito. Portanto, a mulher é desprovida de humanidade, principalmente quando não performa a mulher ideal, pensada e desejada pelo homem, como servil, alegre e silenciosa. A infame bela, recatada e do lar.
Isso é visto como natural, como se biologia determinasse personalidade, ou mesmo caráter. É cultural, porque essas ideias são incutidas no nosso imaginário desde cedo. Ao recebermos de presente objetos que ajudarão a construir esse ideário, por exemplo: bonecas para querermos ter e cuidar de crianças, casinhas para estarmos habituadas com as tarefas do lar que nos estão destinadas e o sonho desde muito jovens de casar com um homem, com quem teremos uma casa, um carro e uma quantidade razoável de filhos. 
Tudo muito romantizado e simplificado para nos fazer cair no conto da carochinha, facilmente. Mas ninguém fala que o ser mulher carrega em si um sinal de violência desde muito cedo. Somos forçadas a perder a inocência e a infância desde crianças, adultilizadas, performando ainda muito jovens padrões de feminilidade através de brincos que nos perfuram as orelhas sem nosso consentimento, depilação assim que os primeiros pelos ousam surgir nas nossas pernas e virilhas, e os malditos saltos altos. 
Somos mais cobradas por sermos mulheres, mesmo que sejamos ainda meninas. Somos ensinadas logo a limpar e a cozinhar. Mal completamos 9, 10 anos, e já somos chamadas de mocinhas. Somos mais repreendidas com relação a nosso comportamento também, enquanto os meninos são criados mais soltos, com menos restrições. E é também nessa fase que o assédio começa. Raramente vai encontrar uma mulher que não tenha sido assediada ainda na tenra idade. 
E não, não são pedófilos raros e doentes. São homens, adultos, em sua maioria heterossexuais, que sabem bem o que querem e quando querem. A maioria das mulheres que se lembram dos primeiros abusos na infância vão dizer, assim como eu posso afirmar por experiência própria, que entre os 9/10 e 18 anos foi o período com maior de número de cantadas grotescas e inconvenientes, seja na rua, na vizinhança, na comunidade (incluo aqui religiosa), escola e primeiro emprego. 
Também acontece com homens mais jovens, às vezes da mesma idade, que pensam como os adultos, só têm menos responsabilidade, pois foram educados para serem pegadores, invasivos e inconvenientes. Esses garotos são os responsáveis normalmente pelos maiores vexames públicos, como espelhos nos tênis para espiar calcinhas, passadas de mão, piadas de mau gosto e até apostas para ver até onde conseguem tirar a roupa de uma menina antes que ela peça para parar. 
Mas assim como os meninos foram ensinados a querer tirar, as meninas foram educadas a não dever tirar. E, sobretudo, não fomos ensinadas a questionar atitudes de homens. Sendo assim, nós ficamos sem graça, mas aceitamos. Nos disseram que é assim que os meninos demonstram que gostam das meninas. Essa lógica cultural ensinou os meninos a serem homens, másculos, fortes, violentos, a não levar desaforo para casa e a não chorar e não saber lidar com suas emoções. Criaram opostos que se ferem e não se completam. 
Enquanto as meninas aprendem a amar, até mesmo a idolatrar, e a respeitar tudo que é masculino, os meninos aprendem a rejeitar tudo que é feminino. Ah, não pode brincar de boneca, é coisa de menina. Não pode usar rosa, é cor de menina. Não pode se cuidar, é coisa de menina. Incute-se uma falta de respeito pelo feminino, mas não pela feminilidade, porque os faz desejar ter, possuir e tomar para si o corpo feminino como se a seu prazer servisse, unicamente. 
E se uma mulher se recusa a performar a feminilidade que lhe é designada, é vista como estranha. Aqui acrescento o fundamentalismo religioso como base patriarcal, ou seja, que reforça a ideia de que o homem é a cabeça da casa e a mulher deve ser submissa a ele. Uma ideia que tira a liberdade de escolha da mulher desde que nasce, que a impede de decidir o que é melhor para si. E o pior, que a impede de reconhecer relacionamentos abusivos com homens violentos, ou mesmo ter forças para sair deles. 
Se a mulher performa a feminilidade que lhe é destinada, ela fica isolada. Passa a viver sob o jugo do marido, da casa e dos filhos. Perde a identidade e os projetos pessoais. Ela se desloca de si mesma. Ela ainda é mulher, mas é a mulher do homem, agora com um nome vinculado para provar o registro de posse da propriedade privada, mas evoluiu para algo mais “sagrado”, a mãe, um ser divino, desprovido de humanidade, que suporta tudo e que não tem o direito de errar. Ou mesmo de não querer esse papel natural. Se tem útero, tem que ser mãe. 
Engraçado que ninguém diz algo semelhante a um homem. Se tem saco escrotal, tem que ser pai. Tanto que a eles sempre são cobrado menos, passa-se mais pano e cuida-se como se fossem eternos meninos. As esposas substituem o papel da mãe na vida deles. E mesmo assim, existem 5,5 milhões de crianças sem registro de paternidade, assim como o abandono parental, que é quando o pai está presente, mas não participa ativamente da educação dos filhos, muito menos se relaciona com eles como seres humanos. São só mais objetos de sua propriedade privada bem sucedida. 
Ele é um homem bem-sucedido porque sai todo dia para trabalhar e sustenta a sua família tradicional. A única família possível e feliz aos olhos da sociedade patriarcal. Mas uma felicidade baseada em que e para quem? 
E não importa que ele abandone essa mãe sozinha com as tarefas estafantes e sem fim da casa, e com o cuidado exaustivo dos filhos, e a responsabilize por pequenas coisas que ele mesmo poderia fazer, como pegar o próprio prato de comida ou lavar a própria louça. Essa violência também ninguém conta quando ilude a menina sobre casamento. O conto de fadas é só uma historinha de ninar pra meninas bobas. 
A esse homem é dado o direito não só de abandonar filhos e esposa, como também de traí-la. A essa performance de masculinidade (tóxica, pelo que estão notando) permite forçar a esposa a fazer sexo quando ele tiver vontade, mesmo que ela não queira. A ele é dado o direito cultural e biológico de ser um ogro com ela, bater nela ou violentá-la. A ele é dado o direito de engravidar a amante e a exigir o aborto. A ele é dado o direito de abandonar essa mulher na mesa de um açougueiro, ou matá-la. 
Em nome da famigerada família tradicional, o maior conto do vigário que existe e que ainda contam, é permitido estuprar garotinhas e exigir que seu corpo ainda em formação geste o fruto desse estupro. “Aborto é assassinato!”, gritam os fundamentalistas religiosos, que só lembram de apontar o dedo para a menininha, e se esquecem do verdadeiro culpado: o homem, adulto, responsável, que deveria cuidar e não violar corpos femininos, muito menos corpos infantis. Reforço: pedofilia não é doença, é culpa do patriarcado. 
A cultura patriarcal educa homens para estuprar, para querer mulheres jovens, para adultilizá-las, para objetificá-las, para as verem somente como vaginas e escravas, para desumanizá-las. Estupro e pedofilia é o resultado dessa desumanização. É o poder máximo masculino sobre o corpo feminino. É esse mesmo poder que mata adolescentes e mulheres que se separam de seus parceiros violentos ou dizem não a um estranho que tenta pegá-las a força. 
As estatísticas não mentem. A maioria dos estupros são causados por homens héteros conhecidos das vítimas. Seja pai, padrasto, avô, tio, irmão, primo, vizinho, pastor, padre, amigo, namorado, noivo, marido. Também a maioria das vítimas são menores de 17 anos. A minoria dos estupros acontecem fora de casa, na rua, com estranhos que invadem as casas ou atacam em lugares públicos. A maioria dos criminosos são nossos conhecidos exatamente por causa dessa cultura que dá ao homem o domínio sobre o corpo da mulher. 
Quanto mais emancipação e autonomia as mulheres pedem e alcançam, mais grupos reacionários e fundamentalistas religiosos reagem e fazem barulho, usando de mentiras e distorções a fim de difamar mulheres, as verdadeiras e únicas vítimas de abusos e violências perpetradas por homens. E não adianta dizer: “nem todo homem”. Os números e as experiências de mulheres desmentem essa afirmação. Em vez de tentar silenciar vítimas e sobreviventes de crimes sexuais, escute, aprenda, mude e evolua. 
Junte-se à luta pela liberdade das mulheres. Para que elas possam escolher serem esposas e mães de maneira livre (ou se negarem a ser se não quiserem) e não como algo naturalmente imposto e socialmente aceitável. Precisa ser algo desejado e buscado por livre e espontânea vontade. Ensinem os meninos a respeitarem as meninas desde cedo. E ensinem as meninas que seus corpos são seus e que ninguém tem o direito de tocá-los sem seu consentimento. Ensinem as crianças a reconhecerem que o amor nunca é violento, que amor não dói, e que o casamento deve ter parceria e respeito mútuos.

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