[ARTIGO] O FUTURO É FEMININO

by - março 30, 2019


Duas datas comemorativas desse mês de março me fizeram pensar no tema deste artigo. O Dia Internacional da Mulher, popularmente denominado 8M, e o Dia do Bibliotecário, 12M (para padronizar). O que os dois têm a ver um com o outro? Como escritora, eu posso afirmar que absolutamente tudo.
Ainda me lembro da minha avó, sentada no sofá com as pernas curtas sem alcançar o chão, lendo sua Bíblia especial com letras grandes. Devido a um problema de visão, ela usava óculos de lentes tão grossas, que quando nos olhava através deles, seus olhos aumentavam, como no efeito de lupas.
Minha avó foi à escola somente por três meses e aprendeu a ler sozinha, depois que se batizou em uma igreja evangélica. Não me lembro de tê-la visto lendo qualquer outra coisa que não fosse a Bíblia. Casou-se antes dos vinte anos e teve sete filhos. Foi dona de casa, faxineira, lavadeira e cortadora de cana.
Minha mãe, a segunda filha e a primeira mulher da família, começou a trabalhar na casa dos outros com apenas nove anos de idade, como faxineira. Saiu do interior de São Paulo, onde hoje vivemos, aos vinte e dois anos para estudar em um colégio da igreja na capital do estado, depois de seis anos sem estudar, onde conheceu meu pai. Dois anos depois, ela se casou faltando um ano para se formar no ensino médio técnico.
Eu nasci quase um mês antes de completarem o primeiro ano de casados e, no ano seguinte, nasceu a minha primeira irmã. Minha mãe se tornou sacoleira para ajudar a pagar a despesa da casa, andando de ônibus com duas crianças a tiracolo. Fora os livros da igreja e a Bíblia, também nunca a vi ler outros gêneros literários.
Eu estava perto de completar cinco anos quando a minha irmã mais nova nasceu. Estudei desde cedo em escola pública. Quando cheguei à quinta série, havíamos nos mudado para o interior há um tempo e conseguimos bolsas de estudo na escola particular da igreja. Ao me formar na oitava, voltei para o ensino público, onde aprendi a gostar de ler (graças às aulas de Literatura).
Assim que me formei no ginásio, tentei entrar na universidade particular da igreja. Não deu certo, por isso acabei usando benefícios do governo para me graduar. Aos dezesseis anos, trabalhei como office girl meio período no escritório de contabilidade em que a minha mãe trabalhava, e devorava cerca de um livro a cada dois dias. Minha mãe terminou o ano de estudo que faltava quando eu tinha nove anos. Hoje, ela é dona desse escritório e vivemos à custa dele.
Eu e minhas irmãs temos curso superior graças a maior incentivadora e apoiadora, nossa mãe, que me contou que nossa avó usava o dinheiro de seu trabalho para comprar os livros para ela. Nós três somos ávidas leitoras, principalmente eu que também incentivei a mais nova. Costumava ler em voz alta para ela quando tinha preguiça.
Sou formada em publicidade e propaganda, mas também tenho licença de jornalista e dez anos de experiência na área de comunicação. Eu me casei somente depois de formada, também aos vinte e quatro anos como a minha mãe, e me divorciei quase cinco anos depois (não tive filhos), pouco depois de dar início à carreira dos meus sonhos: escritora.
Minha irmã do meio se casou aos dezoito anos. Tentou cursar música na mesma universidade da igreja, mas acabou fazendo fonoaudiologia gratuitamente alguns anos depois, também através de benefícios do governo. Trabalhou um pouco na área antes de engravidar do meu primeiro sobrinho. Ela pausou a carreira ao ser mãe e ainda não retomou. Hoje eu tenho dois sobrinhos lindos.
Minha irmã caçula, que nunca se casou nem teve filhos, é formada em administração, tem duas pós-graduações (finanças e gestão de pessoas) e está fazendo curso de inglês. Tudo pago do próprio bolso. Mora sozinha em Curitiba, para onde se mudou há dois anos, e está escalando no meio corporativo da multinacional em que trabalha há quase uma década.
Contei essa pequena história para falar sobre os direitos das mulheres e o acesso aos estudos. Sem que eu precise usar estatísticas, dá para perceber como a escolaridade mudou drasticamente em apenas três gerações. Mas isso aconteceu porque houve luta, muita luta, que mudou completamente nossas vidas hoje. Vou mostrar como a seguir.
Minha avó nasceu em 1930, uma década depois de vários protestos de mulheres pelo mundo contra as desumanas condições de trabalho enfrentadas por elas na Revolução Industrial. Os trágicos acontecimentos históricos deram origem ao 8M, como lembrete da morte delas. No Brasil, tivemos direito ao voto, com restrições.
Minha mãe nasceu no final da década de 1950, período em que mulheres casadas não podiam adquirir legalmente ou adquirir propriedade (foi assim até 1962) sem autorização do marido, assim como estudar. Eu a minhas irmãs nascemos em 1980, época em que as mulheres foram para as ruas e conquistaram o direito de participar de sindicatos trabalhistas, garantia de segurança social e licença maternidade.
O marco da emancipação feminina veio em 1979, quando a primeira mulher ocupou uma cadeira no Senado Federal. No ano seguinte, a senadora apresentou um projeto de lei que revogava a anulação do casamento em caso do marido descobrir que a esposa não era virgem, que foi arquivado por cinco anos, e aprovado somente em 2002.
Em 2003, foi sancionada a lei que disponibilizou um número de telefone para denúncias de violência contra a mulher, combatida no âmbito doméstico em 2006 através da lei Maria da Penha, que possui o nome de uma vítima do próprio marido. A farmacêutica foi agredida várias vezes, levou um tiro de espingarda enquanto dormia e perdeu o movimento das pernas. Foi mantida em cárcere privado depois disso e quase foi morta por eletrocussão e afogamento. Ela sobreviveu, mas ficou paraplégica.
O marido foi julgado e condenado a 15 anos de prisão, dos quais cumpriu apenas 2. O caso alcançou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e foi a primeira vez na história que a violência doméstica foi considerada um crime (no período colonial, o marido tinha permissão legal de bater em sua esposa, que era uma propriedade do homem, como um escravo). Em 2015, foi incluído no Código Penal o feminicídio — homicídio cometido contra mulher — como crime hediondo.
Meus avós eram analfabetos, meus pais fizeram apenas os segundo grau com técnico, mas nós, suas filhas, temos superior ou mais. Segundo o IBGE, entre 2007 e 2015, a taxa de analfabetismo das mulheres era menor que a dos homens. Nas matrículas em cursos de graduação, o sexo feminino é predominante, de acordo com o Censo de 2017. Também somos a maioria das leitoras, e quem mais influencia o hábito de leitura é a mãe ou a figura materna.
Quanto mais estudamos, mais conquistamos. E, quanto mais absorvemos, mais nos expressamos. É nítido nas artes, principalmente na literatura. Quando estudei as grandes escolas literárias, como Romantismo, Realismo e Modernismo, era inegável a dominância masculina na autoria dos textos (mesmo que retratassem protagonistas femininas). Foi a riqueza histórica contida nos romances que me fizeram amar a leitura e desejar escrever minhas próprias experiências e visão de mundo.
Hoje vemos um boom na literatura contemporânea escrita por mulheres (vide a própria que vos escreve), e incluo as blogueiras. É consequência da liberdade que obtivemos de usar a nossa voz. Quanto mais lemos, mais temos o que falar. E estamos ávidas por contar nossas histórias pelo nosso ponto de vista.
É uma corrente do bem, já que nos comunicamos de mulher para mulher, e puxamos uma as outras pela mão para crescermos juntas, linha por linha, incentivo por incentivo, esforço por esforço. E sabe o que é melhor? Diante de todas as dificuldades que descrevi acima, descobri que somos imparáveis. Não há limite para nossa evolução.
Fica uma certeza: o futuro é nosso.

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