O ÓDIO MOBILIZA, MAS O AMOR TRANSFORMA
Tanta preocupação nos últimos tempos devido à pandemia do novo coronavírus não pode nos impedir de vislumbrar algo de bom em meio ao caos que estamos vivendo. Meu depoimento do artigo anterior sobre minha experiência pessoal não abordou o lado emocional, o que pretendo relatar neste. É importante também ficarmos atentos aos efeitos psicológicos da crise sanitária pela qual estamos passando e que só tem nos deixado cheios de incertezas quanto ao futuro.
Eu, como a maioria da população brasileira, fui totalmente despolitizada boa parte da minha vida. Não me interessava por política e votava em grupo, conforme meus pais ordenavam, ou anulava. Não lia notícias, não acompanhava os mandatos, achava que todo mundo era farinha do mesmo saco e pronto. Isso era o resumo da política pra mim.
A mudança começou com meu alinhamento ao feminismo. Passei a entender a importância direta de nossas escolhas políticas e não só para presidente. Afinal, quem faz e aprova leis é o Congresso, e pouco ou nada sabemos sobre os deputados e os senadores que elegemos. Isso acendeu um alerta em mim e comecei a acompanhar notícias e pressões populares, primeiro nas redes sociais, depois lendo notícias.
Nessa nova fase, estou me aventurando por livros teóricos. Estou cansada. Enquanto o presidente e seus seguidores fanáticos tentam vencer essa guerra contra um inimigo invisível através de uma narrativa torpe e nojenta, centenas de pessoas estão morrendo por dia e sendo enterradas em covas coletivas. Não há discussão ou opinião quando se trata de ciência, muito menos quando a vida da população está em risco. E pouco importa se o cara lá no Planalto está perdendo a cadeira por sua própria incompetência administrativa. Cadê a humanidade dessa gente? Cadê nosso senso de sociedade? De coletividade? Cadê a decência humana?
Eu tenho transtorno de ansiedade, que estou tratando com terapia, yoga, acupuntura e alimentação saudável e natural. E viver tudo isso me causa crise atrás de crise, assim como deve acontecer com muita gente. Por não debatermos política ou religião é que estamos nesse buraco. O heroísmo é símbolo da nossa incapacidade de ação coletiva no âmbito político. É sintoma de uma carência social gigantesca. Como povo, precisamos de alguém que nos salve, nos esquecendo que temos as armas em nossas mãos para nos salvarmos a nós mesmos.
A graça, o encanto e o diferencial da democracia é exatamente essa força motriz da esperança, da união, da transformação social que é o desejo íntimo de todos nós. Ninguém quer de fato autoritarismo e morte. Todo mundo quer paz para viver com os seus amores. O problema é que não sabemos lidar com a nossa liberdade sem querer podar a do outro, por uma questão histórica e individualista. Nosso direito está limitado pelo direito do outro.
O medo, quando criado e estimulado, tem o poder de nos tirar a razão e também o bem que habita em nós. Queremos pulso firme, que algo acabe com a incerteza, nem que seja pela força. É através do caos o meio mais fácil de alienação. Está todo mundo correndo em desespero, procurando uma saída, e encontrando nos braços do anti-herói uma falsa salvação que não chega, e nem vai. Não existem heróis no nosso mundo. Existem pessoas tentando serem melhores ou fazendo seu melhor. Mas também existem aqueles vestidos em suas capas e espadas, que na verdade não possuem intenção alguma de criar um mundo coletivo, mas cheio de privilégios para poucos.
Então, o que fazer? Lavar as mãos e desistir de tentar? Não! É da frustração, da perda da fé e da desesperança que nasce a célebre frase: “políticos são todos farinha do mesmo saco”. Quando dizemos isso, primeiro negamos as complexidades humanas, vendo o mundo somente bicolor. Mas as pessoas são mais do que, simplesmente, boas ou más. Existe uma infinidade de tons de cinza no meio, e gosto de pensar que ainda existem aqueles que exalam as cores do arco-íris, se diferenciando da maioria. Não é fácil enxergar essas nuances, mas é necessário para não cairmos em conceitos pré-definidos e sermos enganados de novo por aqueles que até preferem nossa alienação e abstenção. É mais fácil assim governar em prol de seus próprios interesses.
Claramente faz total diferença quem escolhemos para estar lá, tanto nos representando quanto nação, como atendendo as nossas necessidades mais básicas. Basta olhar para a destruição e falta de políticas públicas desse desgoverno. Eu entendo a revolta e o medo. Não temos mesmo que nos curvar diante daquilo que não concordamos. Não temos que nos calar. Mas não devemos nos abster jamais. Reconhecer que somos agentes políticos e que não basta colocar um salvador lá e esperar que milagres aconteçam é necessário. Seria fácil e até cômodo se política fosse simples assim. Mas não é. A verdade é que precisamos nos mobilizar, ir para as ruas fazer valer nossa vontade, debater sobre o projeto de governo, mesmo com quem pensa diferente, sobre aquilo que concordamos ou não, e nos informar, constantemente. Não é tão complicado se abandonarmos de vez o que é fácil e cômodo. Viver não é fácil nem cômodo, por que política seria? Não sejamos preguiçosos.
Eu sei que a correria do dia a dia nos cansa e nos tira tempo precioso para nos informarmos melhor. Mas meia hora por dia, com fontes seguras (um Google e um pouco de senso crítico para selecionar o conteúdo que se apresenta basta), são o suficientes para estar por dentro do que aqueles que colocamos no poder estão fazendo. Política não acontece de cima para baixo. Deve ser de baixo para cima. Do povo para o poder. Por isso é importante nos interessarmos pelo que está acontecendo em nossa cidade, em nosso estado e em nosso país. E reclamar, não só com seus vizinhos e parentes, mas usar canais democráticos, inclusive online, para fazer valer a nossa voz. Eu sou a prova de que mudar não é tão complicado.
O contrário da democracia é a ditadura, e eu prezo pela minha liberdade, principalmente quando tomei consciência dos abusos que sofria quanto mulher e da importância da luta pela igualdade de gênero e pelo fim da cultura do estupro. Foi o feminismo que me fez entender que não estou sozinha. Que tenho irmãs lutando por todas nós e que posso me unir a elas para cobrar do poder público uma vida digna e segura para todas. Esse senso de pertencimento fez eu me sentir menos só e mais acolhida.
E foi a luta de gênero que me mostrou que tudo em nossa vida é política e que devemos participar se queremos mudar o sistema. E não simplesmente negá-lo e virar-lhe as costas. Precisamos de uma reforma política, talvez até uma revolução, para alterar os rumos do país. Mas eu acredito em nós, principalmente nas mulheres, que por tantos séculos fomos silenciadas e aprisionadas, e a cada geração nos libertamos, nos reconhecemos como sujeitas políticas, e abraçamos causas em prol de mudar nossa realidade e o mundo a nossa volta. Fazemos uma diferença tremenda! Nos empoderamos. Estudamos mais. Lemos mais. Aprendemos mais. Temos sede de conhecimento e de mudança. Temos fome de um mundo melhor para nossos pais, amigos e filhos. E temos força, muita força para ser esse motor de transformação.
Estou sendo otimista demais? Talvez, mas sem essa esperança no amor, na união e na sororidade, eu não estaria de pé hoje. Também não teria enfrentado um confinamento de quinze dias se não tivesse meu amor. Meu companheiro, meu parceiro, meu noivo. Ficar trancada dentro de casa, mesmo com meus pais, não foi fácil. Caí facilmente em uma onda sufocante de ansiedade e medo. Tive crises, até briguei com o Beto, tadinho. Mas ele estava lá, mesmo com meu mau humor. Não me abandonou. Se preocupou. Me visitou, preservando a distância de dois metros de segurança. E ainda me pediu em casamento. Alguém como ele foi tudo o que pedi para o Universo e recebi. Acredito muito que tudo o que vivi, inclusive os percalços, me transformaram na mulher que sou hoje, me permitiu ficar pronta para conhecer o grande amor da minha vida, o homem dos meus sonhos.
Quero terminar esse artigo com todo o amor que de mim transborda e que encontrou alguém para preencher, assim como uma causa justa. Se estiver muito difícil, respirem fundo e acreditem. Nunca percam a fé no amor e na humanidade. Pode haver mal e ódio por todos os lados, mas olhem de novo. Mudem de direção, se preciso. Procurem a luz, que mesmo fraca, sempre será mais forte que a escuridão. Alimentem o amor, a solidariedade, comecem por vocês a transformação do mundo que desejam e espalhem para aqueles que estão ao seu redor. Ódio gera ódio, violência gera violência, mas amor e esperança também atraem amor e esperança. Foi assim comigo. Quando me permiti sonhar novamente, e lutar por aquilo que realmente acredito e pela mulher que quero ser, encontrei alguém como eu, também à procura e a espera de compartilhar suas vivências, conhecimentos e sentimentos.
O ódio só é construtivo quando vem com a consciência de que não se está só e que existe luta, por mais difícil que seja. E também precisamos reconhecer as vitórias para não cair na tristeza e na falsa sensação de que damos um passo para frente e dez para trás. Vivamos um dia de cada vez, mas, o mais importante, juntos e esperançosos, nos apoiando um nos outros para não desmoronar. Reconhecendo o que é preciso mudar e nos unindo através do amor para transformar o mundo. A evolução é pessoal, mas deve ser realizada coletivamente. Assim a luz que habita em mim se soma a luz que existe em todos nós.
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