EXISTE DEMOCRACIA SEM IGUALDADE?

by - outubro 03, 2020

Montagem: Linton Publio/Seeb-SP

Democracia é uma palavra que abrange muitas coisas. Mas, de maneira simplificada, entendemos que é um sistema político, ou um regime político, no qual o povo é soberano e escolhe seus representantes através de eleições periódicas. Porém, o debate que quero trazer nesse artigo é: quais são as suas limitações e abrangências? Pretendo trazer alguns assuntos que acredito estarem interligados com esse tipo de governo e que no dia a dia não pensamos muito a respeito, muito menos em suas implicações no exercício pleno de nosso direito ao voto quanto cidadãos livres.
Uma das coisas mais claras que se pensa quanto à democracia é a pluralidade de ideias. Recentemente, se popularizou, e polarizou, os dois espectros políticos esquerda e direita como se fossem duas entidades que não se conversam, sendo que democracia também significa diálogo e debate de ideias divergentes, e a convivência pacífica entre elas, sem haver discriminação ou distinção de indivíduos por seus ideais. Como tudo na humanidade, somos mais complexos do que só esquerda ou só direita, e o certo seria dizer esquerdas e direitas, no plural, reforçando a ideia de pluralidade, tão mais reais. Nada nem ninguém é uma coisa só, tudo possui nuances difíceis de identificar em um primeiro olhar. 
Por isso é ainda mais importante o exercício de escuta, não somente de fala. Opinião própria não é fazer política e muitas vezes vem carregada de senso comuns influenciados pela forma como fomos criados, e não pelo conhecimento adquirido do assunto. Também não somos obrigados a ter opinião sobre tudo. A era da internet nos coloca nessa posição, mas ninguém é capaz de saber de tudo. Na maioria das vezes precisamos de mais informações a respeito antes de opinar. E não tem nada de errado com isso. Aprendizado se faz todo dia, toda hora. 
Conhecer outras ideias pode ampliar nosso horizonte e perspectiva, mesmo que não nos convença. Não se trata de convencimento, é sobre debate saudável, diálogo e socialização. É sobre conhecer outras realidades, outros pontos de vistas diferentes do nosso, e notar que o mundo é muito maior e mais profundo do que a nossa bolha. É enxergar que existem diversas alternativas, o que pode ser um refresco quando não vemos saída para um problema. É pensar juntos, quanto sociedade, como resolver os problemas estruturais do país. 
A liberdade de expressão não pode ser confundida com o discurso de ódio. Há uma linha tênue que separa ambos. Em uma democracia não deve haver espaço para intolerância, porque ela provoca a criminalização de ideias e pessoas, e censura, ignorando as múltiplas realidades que compõe nossa sociedade, que são concretas, e possuem o mesmo direito de fala e escuta. Essa liberdade garante a expressão de ideias também, por exemplo, através da arte, da música, da literatura, e revela um vasto quadro de diversidade que compõe a nossa sociedade de indivíduos humanos divergentes nas formas de vivenciar e enxergar a realidade. 
No entanto, em uma sociedade, social e economicamente desigual, o quanto realmente podemos dizer que somos democráticos? 
A recente onda de criminalização da esquerda em todo o mundo trouxe um mal que achávamos que havíamos superado há um século, mas que está de volta com força: a extrema direita com ideologias nazifascistas. Também reviveu o fundamentalismo religioso, que não é religião, mas a usa como controle e tomada de poder através de imposições de ideias, principalmente no âmbito dos costumes, exige fé cega sem questionar e coloca em xeque o estado laico, que é a entidade frágil da democracia que garante o direito de todos exercerem sua fé livremente, sem interferência do estado ou de outros cidadãos. O estado não pode privilegiar qualquer religião em detrimento das outras. Isso institucionalizaria a intolerância religiosa e perseguição às outras religiões. 
Pensamento crítico se faz com uma educação livre e libertadora, que estimula a dúvida e o questionamento, para que não nos tornemos robôs prontos para aceitar qualquer coisa que decidam por nós. Em uma sociedade desenvolvida, educação deveria contar mais do que lucro, mas não é assim que funciona. Então poderíamos pensar em voto facultativo em vez de obrigatório, que permite muito mais a venda de votos do que a escolha real dos cidadãos. Com pensamento crítico também acabariam o senso comum, mal que perpetua muitas ideias opressivas, mesmo entre os oprimidos, que se tornam cúmplice dos opressores. Também não teríamos que lidar com as fake news, muito menos aceitaríamos as respostas fáceis e simplificadas, difundidas principalmente por essa onda nazifascista que assola o mundo. 
Para que não voltemos a um governo autocrático, existem os três poderes que devem exercer suas funções de maneira independentes a fim de moderar um ao outro, sem interferência. O executivo, que são a Presidência, os Ministérios, os governos dos estados e as prefeituras; o legislativo, que é representado pelo Congresso, dividido entre a Câmara dos Deputados e o Senado, e a câmara de vereadores; e o judiciário, composto por toda a cadeia hierárquica do direito, em todas as esferas, seja federal, estadual e municipal. Quando há a centralização de poder em qualquer uma dessas esferas públicas, há um desequilíbrio e uma ameaça direta à democracia. É o que vimos com a criminalização da política e a valorização do judiciário, como única entidade capaz de combater a corrupção, por exemplo. 
O chamado quarto poder, a imprensa livre e independente, hoje vive um momento de maior desgaste e descredibilidade. Seu papel, assim como de toda a sociedade civil, nós, cidadãos, de movimentos sociais, partidos políticos, vereadores, deputados, trabalhadores, etc, é não apenas questionar os poderes, inclusive o econômico, como também cobrar responsabilidade e reparações quando necessárias. Quando a imprensa não tem liberdade para cumprir seu papel fiscalizador e usa um véu de imparcialidade sem tomar partido da verdade, ela está empurrando a democracia para à beira de um precipício. 
Há princípios que servem de termômetro para sabermos se uma sociedade é democrática na qual podemos nos apoiar, pois são proteções para todos e está em nossa carta magna, a Constituição de 1988, na qual nossos deveres e direitos estão detalhados. Os direitos humanos que, ao contrário que andam dizendo por aí, são de todas as pessoas e comunidades. Das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos quilombolas, das crianças, dos adolescentes, dos LGBTQIA+ também. Direitos como saúde, educação, transporte público, moradia, terra, trabalho, dignidade. Até os animais e o meio ambiente possuem direitos porque hoje entendemos que somos parte da natureza e do mesmo planeta tanto quanto os biomas e as outras espécies. 
Mas, sem igualdade social, como podemos bater no peito e falar que somos uma democracia plena? 
Aí me pego a pensar que a iniciativa privada, que, claro, tem direitos, também precisa ser cobrada de seus deveres, por exemplo o social, que deveria estar acima do econômico. Acontece uma promiscuidade com a política de forma que existe até lobby de nichos de mercado no próprio Congresso, criando e bancando leis que privilegiam os grandes donos de negócios. Se você acha que leis que privilegiam o patrão são boas para os trabalhadores, você está muito enganado. Agora, se você acha que o Congresso deveria trabalhar para o povo que votou nele e não apenas para os empresários que pagaram por suas campanhas, você está certo. Quando a elite que detém as riquezas desse país controla o poder que legisla sobre como as relações entre empregador e trabalhador, não há um conflito de interesses? Também não há um desequilíbrio democrático em que pesa mais os direitos de alguns em detrimento de muitos? 
Não há democracia em uma sociedade em que poucos têm muito, e muitos têm tão pouco ou quase nada. Na qual 1% acumula sozinho tudo o que metade da população do Brasil tem acesso. Na qual o outro 50% vive com menos de R$ 500 por mês. Na qual o desemprego esteja tão alto que o número de ambulantes de rua tenha aumentado 500%. Na qual a fome é a realidade de milhões de brasileiros enquanto latifundiários lucram com o dólar alto das exportações, que alimentam países ricos e destroem nossos ecossistemas, consomem nossa água doce e enchem nosso ar de fogo, fumaça e desastres climáticos. A Terra tem febre e nós somos o vírus que a está matando. 
Pleno emprego é direito de todo cidadão brasileiro, não é favor que empresário está fazendo. Trabalho é uma troca. Estamos vendendo nossa força de trabalho, nosso tempo e nossa expertise para que os empresários lucrem. Emprego é garantia de subsistência, portanto, direito básico. O salário mínimo é direito e deveria aumentar segundo a inflação e garantir o mínimo de dignidade para as famílias. Direitos trabalhistas, previdenciário, seguro desemprego e horas trabalhadas em uma democracia devem ser preservados e não serem mutilados através de mentiras que os empresários que estão influenciando a política contam. 
Sem oportunidades iguais para todos, como podemos falar de meritocracia? Um discurso do mercado para jogar sua responsabilidade social nas mãos de cada profissional, individualizando um problema que é estrutural. É preciso pensar em meios de igualar a todos e para baixo, que é onde está a maioria. A pandemia nos mostrou que sem uma renda básica universal para todos, sem distinção, a desigualdade nunca será diluída. Sem acesso a serviços de qualidade, a educação de qualidade, a saúde de qualidade, a moradia de qualidade, a emprego de qualidade, a informações de qualidade, a produtos de qualidade, etc., não podemos sequer exercer nossa cidadania com liberdade, que é um direito básico. 
Portanto, sem essa consciência coletiva, quanto cidadãos, podemos afirmar que o Brasil é uma democracia? 
Deixo aqui essa profunda reflexão.

You May Also Like

0 comments